segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

BALADA DO MEU NATAL




Já por mim foram passando muitos Natais, em épocas mais felizes uns, outros nas mais atribuladas, mas todos eles com o seu espírito de amor e paz, rudes, genuínos e humildes. Poderia estar para aqui a recordar muitos deles mas hoje só vou lembrar o Natal de quando eu era pequenino, da minha infância, da minha mocidade, de quando ia descalço para a escola, em dias de geada e frio, porque achávamos giro tirar os tamancos com solas de pau de amieiro cardadas com tacholas. Foram Natais emblemáticos pela magia que irradiavam, Natais onde faltava tudo num tempo de guerra mundial e de extrema penúria em todos os povos. Ninguém tinha nada e todos tinham tudo porque se repartia por todos os vizinhos, com alegria e bondade, o pouco que havia.
No canto da  sala da casa de meus pais era armado um singelo presépio, uma cabana tosca feita de gravatos e palha metida no meio de pedras cobertas de musgo e onde estava deitado um Menino Jesus de barro, sorridente e de braços abertos, rodeado por S.José e pela Virgem Nossa Senhora, sua mãe, também do tradicional jumento e da mansa vaquinha. Nessa noite santa, vinham outros irmãos que estavam longe, vinham tios e primos, vinham outras crianças e amigos e á hora da ceia nunca faltou o peculiar bacalhau com batatas e couves galegas, o polvo colorido e fumegante, tudo regado com generoso vinho carrascão do meu adorado Minho. No fim eram servidos os doces: rabanadas tostadas polvilhadas com canela e açúcar amarelo, as borrachonas ásperas e de forte sabor, os bolinhos de jerimu e as filhoses de massa doce de farinha, fritas em azeite puro do lavrador. No fim de tudo e até altas horas da noite era-nos permitido jogar ao rapa com pinhões descascados de pinhas mansas abertas numa fogueira que nos deixava as mãos e as caras ensarranhadas.
Nesse tempo não havia brinquedos nem prendas: os que existiam eram feitos por nós á navalha com pedaços de tabuínhas de madeira, diversos paus e arames. E que lindos que ficavam! Eram carrinhos singelos, barcos e aviões, bicicletas e carros de bois, até um comboio com muitas carruagens. Na manhã de Natal fazíamos uma bola de trapos com meias velhas e logo de seguida espantávamos o frio num jogo renhido entre toda a rapaziada. 
A vida era difícil, com muitas carências, em certos casos com alguma fome. Havia o Salazar e o Carmona, mas tudo era pobre, possivelmente alguns remediados. Nessa altura começava a aparecer a luz eléctrica em certos lugares. Lembro-me de a minha aldeia ter sido uma das primeiras onde ela foi ligada e o meu pai comprou então um rádio muito pequeno, com uma potência mais fraca que a de um telemóvel de hoje e que nós colocávamos numa janela quando aos domingos  dava os relatos de futebol e púnhamos no máximo para que os golos do Benfica se pudessem ouvir no outro lado da Galiza que só tinha o rio Minho de permeio. Grande ilusão das nossas mentes infantis que julgavam ser o mundo um pequeno quintal pois, na verdade, esses gritos de triunfo mal se conseguiam ouvir na própria sala onde nos encontrávamos.
Porque se tornaram então tão inesquecíveis esses Natais da minha juventude? Porque irradiava deles uma essência de paz e fraternidade, uma força divina capaz de parar uma batalha tão mortífera e feroz como a de Estalinegrado, na frente russa, numa trégua tão ingente e avassaladora que invadia as mentes retorcidas pelo ódio. Fui desse tempo e embora lá não tenha estado sei do acontecimento porque dele reza a História. Mesmo nessa noite infernal da refrega a força do Natal fez deter por horas a horrorosa chacina, chamando ao respeito e á piedade a razão humana, podendo então ouvir-se o som dum piano tocando a irreal melodia do "Stille Nacht" que irrompia solitária do fundo dos escombros e da morte. 
Mais tarde, enquanto fui crescendo, outros sóis e outras luas de Natal aconteceram, de uma forma geral deixando sempre a sua intrínseca magia, os eflúvios da sua força infinita e divina que deixavam sempre a caridade e a paz. E durante toda a minha existência, ingénuo de mim, nunca concebi nem imaginei que algum dia pudesse acontecer um Natal como o deste fatídico ano de 2011. Um Natal atrabiliário e de ignominia, abominável, esvoaçado por avejões tenebrosos que zunem á nossa volta em cimérios pesadelos de trevas e fatalidade, onde sobressaem demónios como o asqueroso meliante do Freixo e sua quadrilha, um Natal povoado de cínicos e rapaces ladrões que numa desvergonha sem nome escolheram precisamente esta santa Quadra para roubar, de forma agressiva, os parcos recursos que milhões de pobres e miseráveis tinham angariado durante anos a fio com árduo trabalho e o esforçado suor do seu rosto, extorquidos em nome dum suposto e maldito privilégio.
Por isso aqui estou nesta santa hora a desejar sinceramente a todos os que, porventura, me possam vir a ler, mormente a todos os benfiquistas, um Natal, se não melhor, ao menos como aqueles que citei do meu passado, todos eles imbuídos de verdade, de apreço, de autenticidade. Felizmente que ainda me restam na memória esses Natais passados para os poder sentir e oferecer, pois Natais como o presente não os posso nem quero desejar a ninguém. Seria um desaforo e um insulto porque esse não é o meu Natal!


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