quinta-feira, 11 de novembro de 2010

MÁGOAS VERMELHAS






















Bilhete do jogo





...O Silêncio do desalento reinava por toda a parte, 
e os Cristãos viam com aparente  indiferença os
seus vencedores poluírem as últimas coisas   que,
até sem esperança,  ainda  defende  uma  nação
conquistada - as mulheres e os templos.
                 A. Herculano - "Eurico, o Presbítero"
              
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     Canta-se, no fado de Coimbra, que as Mágoas são negras e, na realidade,  serão dessa cor todas as mágoas.  No entanto, devo dizer-vos, que sendo embora também negras todas as minhas mágoas, existe uma, a maior delas todas que não é negra e sim vermelha!
    Tinha já nascido, anos antes,  uma nova e abrangente religião, de doutrina tão bela e sedutora,  que com o decorrer do tempo se foi alastrando por todos os quatro cantos do Mundo. Fora fundado o Benfica.  Nasceu em berço pobre, com personagens simples e ingénuas, e logo a grande massa do povo, ingénuo e simples, veio engrossar o incontável número dos seus fieis. Era eu pequenininho, foi quando descansava no recanto íntimo de uma carvalheira sombreada, perto de minha casa e a colar em cadernetas cromos de futebol desembrulhados de  rebuçados, que  aderi, mal fazendo ainda o uso da Razão, a essa religião fascinante!                                                               
     Mais tarde, já homem feito, rumei a Lisboa, primeiro por deveres cívicos e depois por motivos profissionais. Aí convivi com outros correligionários da mesma fé e fomos presenciando a épica construção da grandiosa catedral dessa crença, o antigo Estádio da Luz. Lá assistimos á abertura e aterro dos seus alicerces, á semeadura da relva, ás poucas bancadas iniciais e aos primeiros jogos nesse saudoso e já desaparecido recinto.  
    Lembro-me como se fosse hoje, e vão decorridos já cinquenta e tal anos, era treinador  Otto Glória, que certo domingo se realizava  a última jornada do campeonato e ainda se não descortinava o campeão.  Tempos impolutos esses, sem qualquer batota!  Jogava o Benfica na Catedral com o Atlético e o Belenenses nas Salésias com o Sporting.  Se os de Belém ganhassem seriam campeões, mas se empatassem e o Benfica ganhasse, o título ia para o Benfica.  Faltavam dez minutos para tudo acabar e, na Luz, o Benfica cumpria a sua obrigação ganhando por 3-0, enquanto o Belenenses derrotava o Sporting dos ditos violinos, por 2-1.  Como era previsível e dadas as circunstâncias, no jogo da Luz  tudo se mantinha em silêncio e conformado.  Faltavam cinco minutos para o fim e, num repente, um clamor enorme e abrupto retumbou pelas poucas bancadas existentes; é que os Lagartos tinham feito o empate e, logicamente, o campeão iria ser o Benfica. Como foi. Por coincidência, nessa altura encontrava-se na Capital, em visita de estado, o presidente do Brasil, Café Filho. Como viajara de barco militar e dado o treinador do Benfica ser brasileiro, a assistência dessa partida estava repleta de marinheiros da tripulação do navio. Parecendo surgir do nada e sem se descortinar donde, apareceram foguetes, bombos, bandeiras e cornetas, como se estivesse tudo planeado para a festa.  Gerou-se tal alarido, tal confusão e pandemónio que, num ápice, toda aquela marinhagem era passeada em triunfo aos ombros das pessoas por todo o relvado, numa incontida euforia.  Impelido não sei como nem porquê, também eu me encontrei no meio da relva, perdido, ao sabor da alegria. Foi então que me lembrei de arrancar uns fiapos dessa erva bendita, metendo-os dentro do bocado do bilhete de entrada e que guardei devotadamente até hoje, como se de uma relíquia se tratasse.  Para mim era, porque hoje e após esta evocação, posso exclamar com orgulho: " ... eu estive lá!" 
     A partir daí,  essa Catedral, esse templo imenso e sagrado passou a irradiar a sua Luz por toda a Terra, através dos seus jogadores, quais missionários abnegados e caminheiros do Mundo, quais evangelizadores de uma boa nova  de fascinante pureza. Desde Machu Picchu dos Incas, nos píncaros inacessíveis dos Andes, até ás estepes geladas da Sibéria, desde a gruta de Fingal até á profundeza das fossas Marianas, desde as tribos de sertões impenetráveis até ás metrópoles cosmopolitas do Mundo, ali o Benfica era conhecido, estimado e honrado. Era mesmo uma luz refulgente e a brilhar se manteve durante muitos e numerosos anos. 
    Mas ai!  Em tempos ainda recentes, surgiu entre nós uma heresia tenebrosa, cuja doutrina se baseou na mentira, na fraude, na extorsão, na violência, no terror e mesmo na morte! Cobriu tudo como nuvem atra e apavorante. Elegeu como missão primordial o extermínio dos valores dessa religião benfiquista, levado a cabo por um reduzido número de acólitos e verdugos, porém aguerridos e fanáticos.  Cresceram como ervas daninhas que tudo estiolam e abafam, como praga bíblica oriunda de algum antro demoníaco. Adquiriram  desmedido poder, construindo um criminoso Império de trevas e ranger de dentes.  E, como as hordas de bárbaros  da História, tudo invadiram, destruindo e pisando o que era decente e belo.  Despontaram então calamitosos tempos de injustiça e mentira, de podridão e miséria, que ainda hoje perduram. 
    Como ressalta o historiador, essa corja vai poluindo as mulheres e conspurcando os templos, acima de todos, esse magnífico e deslumbrante templo da Luz, santuário que lhes acicata a sanha de profanação. 
     E que fizeram e fazem  todos os conquistados e vencidos? Perdida mesmo a esperança, mal esboçam ou nem sequer  tentam a defesa dos seus templos; quero acreditar que mais por debilidade e fraqueza, do que por conformada indiferença.  
Diz o fado;
Fui ao “Mondego” lavar
As penas das minhas mágoas;
Minhas mágoas eram negras,
Negras ficaram as águas!
Para mim não são negras, não: são vermelhas.  Como o sangue!















Fiapos de relva






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